pedro sciaccaluga
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Os primeiros dois dias de um jovem Engenheiro Civil em Angola​

Em 2004 aquando da minha aventura em Angola, através do programa contacto (que coloca portugueses em várias cidades espalhadas pelo mundo), lançaram o desafio para escrevermos uma crónica sobre a nossa experiência em cada um dos diversos países. Acabei por ganhar o primeiro prémio com o texto que escrevi. Posso considerar que foi a primeira pedra nesta aventura da escrita que me apaixona. Partilho aqui esse texto dos primeiros dois dias do diário desta aventura.

Os primeiros dois dias de um jovem Engenheiro Civil em Angola​

 
​27/1/2004
 
Dia 27 de Janeiro de 2004, Dia da partida de Portugal rumo a um novo Pais, um novo Continente, uma nova Vida.

Viajem tranquila, sentei-me à janela ao lado de uma senhora, a vista aérea da travessia do Sahara é fantástica, pude observar o deserto imenso e o poder da natureza com desfiladeiros incríveis, rios que de repente apareciam, mas não conseguiam dar vida à terra que permanecia teimosamente amarela.

Chegada a Luanda, ao Aeroporto 4 de Fevereiro, marcada pela chuva, por alguma demora no desembarque e o primeiro pedido de uma “gasosa” ou uns Eurozitos como me tentou explicar o rapaz depois de ver a minha cara de quem finge que não percebe o que lhe estão a dizer. Em troca oferecia uma passagem descansada pela alfândega sem que me abrissem a mala… “sem problema” dizia ele. Mas ainda não foi dessa vez que o sistema das gasosas funcionou, consegui usufruir dos benefícios da oferta sem qualquer tipo de custo ao ser salvo pela chegada de um colaborador do Eng. Francisco, o Cunha, que me foi buscar depois da passagem pela alfândega, ainda dentro do aeroporto, afugentando o rapazito. Não demorou muito no entanto para ver o sistema funcionar. Fui recebido então pelo Cunha, pelo Francisco, que me deu um telemóvel para os primeiros dias e pelo Raul, que trabalha na secção das compras para o Salvador. Fiquei com o faz tudo do Francisco ao pé do jipe do Raul enquanto o Francisco e o Raul foram tentar pagar o parque, aproveitei para telefonar à mãezinha. Após alguns minutos volta o Raul farto de desesperar na fila à chuva. Entramos no jipe e saímos do parque sem pagar o ticket mas pagando uma gasosa para que nos abrissem a cancela, 200 Kwanza resolveram o assunto. Adeus fila interminável! Olá Sistema! Olá Angola!

O mais hilariante foi sem dúvida quando o Raul parou o jipe se virou para mim e disse: “é aqui”. Espero que não tenha percebido o meu pensamento com a minha reacção. Saímos do carro. Tentei disfarçar o meu espanto e pensava para mim mesmo “onde me fui meter!?!, quando é que me vão tirar o fígado!?!”. Foi um bocadito assustador, a luz não era muita, na porta do prédio estavam duas raparigas com ar de meninas, o ambiente era típico dos filmes de Hollywood antes de acontecer o crime. O prédio, a zona, TUDO!!!, tinha ar de abandono; a degradação era grande. O ambiente provocado pelos sons da chuva, as gotas a cair e os riachos a correr, um dos quais tivemos que atravessar com as malas para chegar ao passeio ajudou a criar a atmosfera propícia. Entrámos no prédio, o Raul procurava alguém que deveria andar por ali, encontrou-os ao cimo da escada que davam para o primeiro andar onde se encontram os escritórios da Triaga, empresa do Salvador. Enquanto indicava onde eram os escritórios disse aos rapazes para irem levando as malas. O elevador existia mas não era utilizado, apenas me perguntava à quanto tempo terá deixado de funcionar. Subimos as escadas em direcção ao quarto andar… assustador, escadas estreitas que em cada andar chegavam a um patamar que servia de hall de distribuição para os vários apartamentos, muitos dos quais como aquele em que me encontro têm um gradeamento que separa o patamar de chegada do gradeamento que protege a porta de entrada, ou seja duas grades, uma porta, e um espaço de cerca de cinco metros entre os gradeamentos. Chegámos e fui recebido pelo António Costa, director de produção da Triaga.

O Apartamento… Bom. O Apartamento, o que dizer do apartamento. Entramos e deparámo-nos com um corredor de distribuição para as várias divisões. Duas casas de banho, uns quantos quartos, ou cubículos para ser mais preciso, pladur serve como divisão para aumentar o número de cubículos e diminuir o espaço de sobrevivência de cada um, e a cozinha que dá acesso à zona da sala/sala de jantar e espaço de roupa. O mobiliário é escasso e pobre, vejo uma bandeira de Portugal e outra da União europeia penduradas na sala, mais tarde vejo que também havia uma de Angola mas que tinha caído ao chão. Uma coisa tenho que elogiar, a limpeza, o apartamento é muito limpo, foi a impressão com que fiquei, pelo menos até que fiz uma visita à cozinha mais tarde e vi umas quantas baratas a sair do lavatório e esconderem-se debaixo da bancada quando sentiram a minha presença.

Voltando à chegada ao apartamento, fui recebido pelo António Costa e levaram-me para o “meu” quarto, amplo, com duas camas e um beliche de ferro, oito colchões, dois armários, três mesas-de-cabeceira, uma cadeira e ar condicionado!!!, a cama não estava feita mas resolveu-se rapidamente o assunto com dois lençóis. Perguntaram-me se tinha fome e comi uma bela sopa e um bife com ervilhas e batatas cozidas enquanto falava com o António e íamos olhando para a televisão que recebe via satélite entre outros a RTPi, SIC internacional e SIC noticias. Recebi o penúltimo susto do dia quando o António disse que não havia água quente em casa e que não era só hoje era sempre (o último foi quando vi as baratas de que já falei).

O Raul já tinha ido embora. O António vai dormir. Fico eu… Sento-me um bocado no sofá a fazer zapping e paro quando vejo o Arsenal a jogar, levanto-me e vou arrumar as malas, ligo o insecticida de parede, arrumo umas quantas coisas e de repente lembro-me: “vou tirar fotos!!!, a malta tem que ver isto!!!”… Estou integrado, passou o susto.
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28/1/2004

​Passado o susto inicial tudo parece melhor, o meu quarto é grande e porreiro, é limpo e ainda não vi nenhum mosquito!!!. Levanto-me e vou às janelas do apartamento, Na janela da sala a vista não é das melhores. O ambiente é de museque, prédios degradados, ruas de terra, as mulheres a passarem com cestos com chinelos lá dentro e depósitos na cabeça, ou a lavar qualquer coisa numa poça de água que se formou no terraço, homens a empurrar uma carrinha, lixo no cimo dos telhados, muitas parabólicas… a varanda do meu quarto é comum à da sala e dá para a alcatroada rua principal a Alameda Manuel Van-Dúnem, esta já tem um cenário mais dentro dos nosso padrões, é uma avenida larga, com corredor central para peões arborizado e cenário mais cosmopolita, por outro lado não deixa de ser um cenário degradado, onde se nota que nada foi feito nos últimos anos em termos de “cosmética”, acredito que desde a construção dos edifícios que se vêm nada foi feito em termos de reabilitação desde que foram construídos.

Quanto aos mosquitos não devia ter sido tão optimista por ainda não ter visto nenhum porque momentos depois deste pensamento vou à casa de banho e mato o primeiro, vou tomar banho e mato o segundo, deito-me um bocadito olho para o tecto e vejo outro, vou buscar o insecticida, que o pé direito do apartamento é grande e não chego ao tecto, volto e já não está lá o mosquito conclusão: Existe um mosquito, potencialmente com malária, no meu quarto, VIVO!!! Começo a usar o repelente que começava a achar que se calhar nem ia ser tão necessário em casa. Enquanto escrevo isto (são 11 da manhã), e uma vez que estou no quarto e me lembrei do gajo olho para cima e…lá está ele!!!. Já tenho o insecticida à mão e ao atingi-lo vejo que há outro, e outro AHHH!!!!!! Reforço de repelente na pele, spray, stick, TUDO!!!. Pelo menos um tenho a certeza que morreu, vi o cadáver e até o fotografei como prova.

Entretanto já conheci três empregadas do apartamento, a Isabel, a Magda e a Fina que é a chefe. Digo que conheci três e não as três porque já nem sei se haverá mais, mas penso que não, embora também pensasse o mesmo ao ver uma e depois duas. Uma delas não sei se a Isabel ou a Magda, uma vez que estas ainda são iguais para mim ao contrário da Fina que já reconheço porque é mais velha que as outras duas, veio ao quarto limpar o chão, buscar a roupa suja e levar o lixo e perguntou-me se era familiar do Sr. Carlos e se ele estava bem uma vez que foi operado e eu respondi afirmativamente às duas questões, depois perguntou-me se vivia com ele o que me pareceu absolutamente estranho até perceber que cá deve ser normal as famílias viverem todas juntas. Entretanto a Fina veio perguntar se tinha tomado o pequeno-almoço, se queria leite, ou café, eu respondi que não gostava nem de leite nem de café o que até deve ter parecido mal (deve ter pensado: puto mimado) e ela passado um bocado traz-me ao quarto torraditas num prato, com um bocado de manteiga e uma faca, acompanhado de um pacote de sumo e um copo que eu agradeci. Depois veio dizer que o Salvador estava ao telefone e que me queriam ver lá em baixo na Triaga, falei com o Salvador e fui lá abaixo onde conheci o António Araújo e os restantes trabalhadores que por lá se encontravam cujos nomes não retive. Voltei para cima, escrevi mais um bocado e deitei-me a dormitar um bocado até que me telefonou o Francisco a dizer que me vinha buscar às 14:45 para lhe dar tempo de ver o noticiário de Portugal que cá começa às 14h uma vez que o nosso relógio marca mais uma hora que em Portugal Continental. São 12:22 vou esperar pelo almoço e que o Francisco me venha buscar para ter as segundas impressões de Luanda e ver o escritório da COBA. Chamaram-me para almoçar, já volto… Voltei, conheci o Rendas e o Rui que trabalham para o Salvador. O Rui ficou no apartamento mais tempo e esteve a falar um pouco comigo, trabalha na reparação da frota automóvel da Triaga e diz não se ter adaptado a Luanda, e digo Luanda porque ainda não saiu de cá. Não costuma sair à noite, e fiquei com a ideia de que o seu único objectivo é conseguir juntar algum dinheiro. Diz-se saturado com as cabeças de cá uma vez que, explica uma coisa, passado meia hora explica a mesma coisa à mesma pessoa e ao fim do dia ainda não se fez entender. Reclama muito com os altos preços, com as filas e forma de trabalhar. Afinal percebi mal o nome de uma das moças, não se chama Magda mas sim Marta e agora já as sei distinguir uma vez que já tive um pouco mais de contacto com elas. A Fina já nem me parece tão velha como da primeira vez que a vi mas sei que já esteve em Portugal, pelo menos foi o que o Rui disse.

O almoço foi fixe, sopinha, cervejinha e pedacitos de carne refogados com batatas fritas. Muito bom. Também estive a ver um bocado de televisão, a ler o guia de Angola e falei com o meu pai e a minha mãe. São 14:23 e vou começar a preparar as coisas para sair uma vez que o Francisco deve passar por cá dentro de menos de meia hora. Até já.

Olá, são19:00h e estou no escritório à cerca de meia hora. O Francisco foi-me buscar, como combinado, a “casa” e viemos para o escritório. No escritório conheci a Soana, cujo nome ainda não sei escrever, que é a secretária. Foi-lhe pedido que visse o que seria necessário fazer para eu arranjar um número de telemóvel da rede Unitel (092), passado um tempo ela disse que eram precisos 180 dólares!!!, só para ficar com um número!!!!. Carregamentos obrigatórios de 50 dólares de dois em dois meses. Enfim.

Olho pela janela enquanto espero pelo Francisco, que me disse que íamos à rua, e vejo duas mulheres a lavarem-se na rua, num charco formado pela chuva. Tive que tirar uma foto. Elas estavam mesmo a lavar-se ali, não podia acreditar no que via, esfregavam, esfregavam, esfregavam, os pés, as pernas e os braços. Melhor que nada "né".

Entretanto saí com o Francisco para entregar uns documentos à DNA (Direcção Nacional de Águas) e à ELISAL (empresa de limpeza e saneamento de Luanda). Tentei no trajecto identificar UM branco mas não consegui, acho que me vou divertir a descobrir onde está o Wally ao ar livre.

 Feito isto levou-me a um passeio de apresentação à cidade de Luanda. Passamos pela Marginal, Ilha de Luanda, que permite ter uma vista fantástica da Baía de Luanda, Avenida Agostinho Neto visionando o mundo à parte dos dirigentes no alto do morro, onde não deve faltar nada, tudo rodeado por um muro alto como se de uma fortaleza se tratasse. Finalmente voltámos ao escritório e vou enviar-vos pela net estes primeiros passos e impressões da caminhada. Até breve.

São 23:52h, o Francisco deu-me boleia para o apartamento, à chegada tinha sopa e um belo peixe assado no forno com batatas à minha espera. Conheci o Jorge que se não me engano já cá está à 14 anos, tem mais de quarenta anos até diria mais de cinquenta e trabalha na construção. De uma conversa que presenciei entre ele e o António deu para ver que amanhã devia ir pintar umas piscinas. O António que entretanto tinha chegado estava todo lixado com o Rui uma vez que lhe tinham dito que o gerador estava a ficar sem gasóleo e ele não fez nada para resolver o problema. Pois é. Gerador. Muito importante. Um luxo. Sim porque acho que ainda não disse nada sobre o assunto mas esta zona está sem electricidade à dois dias e é o gerador o salvador da pátria, ainda hoje o Francisco contava a chatice de ficar sem electricidade mas que pior que isso é não ter água e ele teve que passar sem ela DOIS MESES!!!!! Ainda antes de sair do escritório a sua preocupação era se teria electricidade. AH! E eu até fiquei em sentido ao ouvir que não tinha água quente mas o Francisco, durante os sete anos cá, nunca soube o que isso era.

“Bueno”, depois de jantar vim para o quarto onde comecei a ler o Plano Director de Abastecimento de Água e Saneamento da cidade de Malanje, não sei porque mas fiquei de súbito com um sono, ainda passava pouco das nove mas apaguei a luz e dormitei um pouco a ouvir Mafalda Veiga no Discman. No entanto ainda não era hora de dormir, passava das dez e acendi de novo a luz. Acabei de ler o Plano Director. Fui buscar uma segunda dose do peixinho que a fome começou a aparecer e deliciei-me aqui no quarto. Fui lavar os dentes outra vez e deitei-me a escrever o resto do dia de hoje. Até amanhã. Ainda vou ler um bocado.
P.S. Já fui mordido por um mosquito, já sou um potencial infectado pela malária.
 
 Pedro Sciaccaluga Fernandes

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